Se você, assim como eu, já buscou o famoso “trabalho com propósito”, sabe que essa procura cedo ou tarde se torna vazia.
Não quero bancar a cavaleira do apocalipse ou começar este texto em tom de desesperança. Antes de tudo, deixo claro que o propósito no trabalho é importante. Pessoalmente, iniciei algumas transições profissionais em busca de um ofício que, ao mesmo tempo, fosse capaz de me remunerar como eu gostaria e me realizar na alma.
A questão é: Qual é o real lugar dele no trabalho que fazemos?
Para construir o raciocínio dessa discussão, não poderia deixar de contar um pouco sobre a minha experiência pessoal.
Devo admitir que fui bem sortuda na minha vida profissional. Ao contrário da maioria dos meus colegas de faculdade e de profissão, pude começar no mercado de trabalho de modo nada tradicional.
Em 2018, ainda na faculdade de Direito, andava bem desesperada por não conseguir um estágio em um escritório tradicional de advocacia. Com o tempo, comecei a achar que o fato de não conseguir uma vaga foi uma verdadeira providência divina.
Na ausência da vaga, optei por me ocupar com alguns projetos e um deles foi capaz de me dar as habilidades que até hoje eu uso no meu trabalho. No final do ano, eu havia entrado em uma empresa júnior como co-fundadora. Se você não conhece o Movimento Empresa Júnior, devo te explicar que se trata de uma iniciativa universitária para jovens experimentarem um gostinho do mercado de trabalho na prática, ao invés de esperar sentado na cadeira da sala de aula para, ao final de 5 anos, lidar com um cliente de verdade.
Acontece que são dois pilares que sustentam o movimento e as próprias empresas juniores: um é o propósito e o outro é uma palavra que, com frequência, me recuso a usar sempre que posso: impacto. Esses jovens, alimentados pelo propósito e pelo impacto, não fazem um trabalho qualquer, muito menos de qualquer jeito. Eles o fazem com paixão e vontade que, pra mim, são invejáveis.
Tudo isso sob o manto do propósito de formar líderes e empreendedores que tenham o compromisso de mudar o Brasil, não importando a sua área de atuação.
Devo dizer que essa vivência e o trabalho com propósito me fizeram ter um gás que eu nunca tive antes. Por alguns anos, junto à equipe da empresa júnior, desenvolvi projetos, participei de eventos e conheci pessoas com a disposição de alguém que corre, corre e mal se cansa.
O problema é que o tal do propósito me viciou.
Ao final do meu período nessa empresa, pela primeira vez na vida, experimentei um sentimento de vazio e, na tentativa de preenchê-lo com algo parecido, consegui uma vaga em outra empresa, igualmente maravilhosa, que também tinha um pilar de propósito muito sólido.
E, claro, como uma boa “zillenial”, ao conseguir essa oportunidade, meus olhos brilharam como os de um viciado que, novamente, consegue repetir a dose. A empresa tinha tudo o que eu mais queria em um só lugar: trabalho, diversão, reuniões descontraídas, escritório sem dresscode, comemorações periódicas e, sobretudo, um propósito forte de transformar a realidade de outras pessoas com a solução que vendia.
E, de fato, ele se cumpria dia após dia, o que me encantava ainda mais. Talvez seja por isso que decidi ficar por tanto tempo lá.
Acontece que depois de muitos anos, comecei a duvidar que o propósito, do modo como eu o vivia, seria capaz de me satisfazer no longo prazo. Para manter ou aumentar o grau de satisfação, eu também precisaria elevar a “dose” de propósito: mais reuniões, festas e reconhecimentos de colegas e clientes. O problema é que, assim como o corpo de um adicto dá sinais de estafa após uma hiperestimulação, minha mente já se mostrava exausta de viver nesse barato constante.
Será que o propósito é tudo isso que buscamos?
Em seu livro “Previsivelmente Irracional”, o professor de psicologia e economia Dan Ariely introduz um conceito de “normas sociais x normas de mercado”.
A primeira categoria se aplica a todos os tipos de relacionamento não comerciais que temos: com a sogra, com a família e com o namorado, por exemplo.
Dentro de um relacionamento regido por normas sociais não é de se esperar, por exemplo, que a sua esposa ou o seu esposo cobrem R$ 100,00 por hora de carinho ou conversa. Você sabe muito bem que, mediante pagamento, essa relação teria o nome de outra coisa bem constrangedora que, na prática, é uma relação comercial.
As normas sociais sancionam com toda a força qualquer ameaça de troca comercial, sob pena de uma ofensa irreparável. Eu recomendo fortemente que, em hipótese alguma, você se ofereça para pagar um jantar delicioso que a sua sogra fez ou para tentar compensar a surpresa de dia dos namorados que sua esposa preparou com tanto carinho.
Elas podem nunca se recuperar dessa ofensa.
Ao contrário dessas regras que regem as nossas relações, as normas de mercado não funcionam com base no carinho, mas sim com base no dinheiro, money, bufunfa.
Ao comprar uma casa nova, por exemplo, o corretor não espera que o pagamento seja um abraço e um afago, mas sim uma transferência significante, feita após o máximo de afeto que se pode obter de uma relação comercial: um aperto de mãos.
E não se trata de falta de cortesia ou consideração. Relações comerciais foram feitas para existir desse jeito, do mesmo modo que relacionamentos regidos por normas sociais só funcionam como devem se a troca for desinteressada, sem qualquer valor envolvido.
Essa é a natureza de cada norma.
O problema surge quando começamos a misturar as duas coisas e entramos em uma zona cinzenta, assim como acontece nas empresas com propósito.
Ao mesmo tempo em que você é pago para fazer o seu trabalho, se depara com outras situações que te fazem pensar que essa empresa é a sua nova “família” e, assim como tal, pede de você algum tipo de animação e compreensão que não são tão normais assim em um ambiente corporativo, de trocas comerciais.
Em algum grau, essa mistura pode tornar o seu trabalho confortável, mas, cedo ou tarde, alguns dilemas começam a aparecer. Para dar um exemplo mais claro disso, Dan Ariely dá alguns detalhes sobre a influência das normas sociais nas relações entre bancos e clientes:
“Nas últimas décadas, empresas tentaram se vender como companheiras sociais - ou seja, gostariam que pensássemos que elas e nós somos uma família ou, ao menos, amigos que passam pelas mesmas dificuldades. Quem começou o movimento de tratar os clientes segundo as normas sociais também teve uma ótima ideia. Se os clientes e uma empresa são uma família, a empresa obtém diversos benefícios. A fidelidade é o principal. Pequenas infrações - errar na sua conta ou mesmo impor um modesto aumento em suas taxas de seguro - são aceitas. Os relacionamentos, é claro, têm altos e baixos, mas no geral são positivos. Mas eis o que acho estranho: embora as empresas tenham gastado bilhões de dólares em marketing e propaganda para criar relacionamentos sociais - ou ao menos uma impressão disso, não parecem entender a natureza dos relacionamentos sociais nem seus riscos, em particular. Por exemplo, o que acontece quando o cliente emite um cheque sem fundos? Se a relação se baseia nas normas de mercado, o banco cobra uma taxa e o cliente paga. Negócios são negócios. Embora a taxa seja desagradável, ainda assim é aceitável. Mas, em um relacionamento social, uma taxa tardia e cara - em vez de um telefonema amigável do gerente ou uma dispensa automática da taxa - não apenas envenena o relacionamento, como é uma punhalada nas costas [...]”
Trazendo o mesmo raciocínio para a esfera do trabalho com propósito, esse dilema pode aparecer em algumas situações, como aquela na qual você e seu chefe ou coordenador se tornam próximos e, em determinado momento, preferencialmente quando ele precisa te cobrar de uma tarefa não feita ou quando você precisa pedir que ele pague suas horas extras, essa relação se torna confusa. Afinal, dentro de uma relação comercial você tem alguns elementos de normas sociais que, em algum ponto, são quebradas por cobranças comerciais.
O resultado não pode ser outro: confusão e constrangimento.
Ainda sobre o mesmo assunto, o professor fala:
“Hoje as empresas acham vantajoso criar um relacionamento social. Afinal, no mercado atual, somos produtores de ativos intangíveis. A criatividade conta mais do que máquinas industriais. A divisão entre trabalho e lazer também se tornou indistinta. Os gestores de empresas querem que pensemos no trabalho enquanto voltamos para casa ou tomamos banho. Eles nos deram notebooks e celulares para reduzir a lacuna entre o local de trabalho e o lar. Muitas empresas americanas aderiram à tendência de trocar o pagamento por hora pelo salário mensal, o que torna ainda mais indefinidos os limites do horário do expediente, que já não funcionam mais das nove às cinco. Nesse ambiente de trabalho de 24 horas por dia, sete dias por semana, as normas sociais têm grande vantagem: tendem a tornar funcionários empolgados, esforçados, flexíveis e preocupados. Em um mercado no qual a fidelidade dos funcionários aos seus empregadores costuma esmorecer, as normas sociais são um dos melhores meios de tornar os funcionários fiéis, bem como motivados.”
Com isso, não quero dizer que o fato de uma empresa ter um propósito é ruim. Porém, é preciso saber como fazer isso sem cair nas armadilhas das normas sociais. Isso vale para os dois lados: empresa e funcionário.
Principalmente o último, que é o objeto da discussão que trago aqui. Se você trabalha ou deseja trabalhar em uma empresa assim, precisa aprender a lidar com a realidade do propósito e das normas sociais sem achar que, de fato, o seu trabalho é a sua família. Claro, você pode sentir carinho pelos seus colegas ou gostar muito do seu ofício. Mas, no fim das contas, ele é o que deve ser: um trabalho.
E existem sentimentos que, em sua totalidade, só podem existir de modo pleno no contexto que nasceram para existir. Isso quer dizer que sentimentos nobres, como o amor, talvez não devem se misturar tanto assim com o nosso trabalho ou com outras relações comerciais.
Isso pode soar um pouco duro, mas se não fosse assim, não haveria tantos jovens millenials ou da geração z com dificuldade de construir uma carreira sólida, mesmo em empresas com propósito.
A prova disso é o mais recente fenômeno do mercado de trabalho: o quiet quitting1.
Milhares de jovens se comprometem a entregar nada além do mínimo estabelecido em contrato pelo fato de desencantar do propósito que o trabalho supostamente poderia preencher.
Não me atrevo a dizer que não existem outras causas para a demissão silenciosa, mas afirmo que o trabalho com propósito não é suficiente para evitá-la.
Se, por um lado, ele não remedia ou impede a estafa e as más posturas no ambiente de trabalho, por outro, trabalhar sem um propósito pode nos levar a viver como autômatos.
Mas, afinal, como trabalhar: com ou sem propósito?
Não pretendo desenvolver uma resposta definitiva aqui. No fim das contas, você deve ponderar e escolher trabalhar com ou sem propósito, ou fazer melhor do que isso e encontrar uma terceira via no meio dessa confusão: entender o significado real de propósito.
Para trilhar esse novo caminho eu, particularmente, recorri ao dicionário2 e descobri que propósito nada mais é do que “aquilo que se pretende alcançar” ou “finalidade, fim, mira”. Esta definição pode parecer fria, mas é suficiente para tornar tangível algo que tantas pessoas insistem em tornar místico.
Não ignoro que possa haver algo de místico ou divino, muito menos que é possível receber um direcionamento sobre aquilo que você pretende alcançar em sonho, visão ou a partir de um desejo profundo da sua alma.
Se você descobriu seu propósito assim, considere-se sortudo e prepare-se para fazer o possível e torná-lo real.
Mas, se como a maioria das pessoas, você não teve uma descoberta sobrenatural, talvez a melhor saída para entender qual é o seu propósito seja:
Observar a sua vida atual
Observar a vida daquelas pessoas que são um modelo para você
3.Escolher, com intenção e a partir do que você observou, algo para ser (inteligente, criativo, bem relacionado) ou ter (um diploma, uma casa ou um carro).
Mas se, ainda assim, você não sabe o que deseja alcançar, é perfeitamente possível descobrir, assim como Richie fez, na série The Bear3.
Ele, um funcionário turrão e barulhento do restaurante The Beef, em um dos seus poucos momentos de calma tem uma conversa com Carmy, amigo e chef do local e pergunta: “Qual é o meu propósito?”
Com uma tristeza profunda e típica daqueles que se enxergam como párias face a uma elite de trabalhadores felizes, realizados e radiantes por viverem um propósito, Richie revela a sua insatisfação em ver que seus amigos amam o trabalho, enquanto ele mesmo não tem ideia do que exatamente amar naquele lugar.
Para descobrir o seu propósito, ou o que alcançar, ele precisou viver.
Foi preciso, por dias a fio, polir garfos e passar por diversas tarefas irritantes para que, um belo dia e por acaso, ele tivesse a chance de descobrir, ao servir uma mesa do restaurante requintado, que a finalidade do seu trabalho era, literalmente, servir as pessoas.
Richie não encontrou um propósito digno de um post no LinkedIn, mas, no fim das contas, achou algo que valia a pena ser perseguido
Até hoje, depois de ter vivido uma jornada incansável em busca de propósito, confesso que, assim como o Richie (e talvez como você), ainda não encontrei algo que seja capaz de me fazer uma capa da Forbes ou top voice do LinkedIn.
Mas isso não é o mais importante.
O mais relevante nisso tudo é saber que a função dele na minha vida é não tomar de conta dela a ponto de fazer das reuniões sem dress code ou dos jogos de sinuca na empresa algo tão importante quanto sentar todos os dias e escrever.
O papel do propósito é o de me tornar ciente suficiente da importância do que faço para não precisar de toda essa parafernália para trabalhar.
Este ensaio foi o resultado da Oficina de Escrita, ministrada pelos professores Rafael Censon e Raul Martins. Você também pode acessá-lo, junto com textos de outros colegas excelentes, clicando aqui.
Na dúvida sobre a definição de um termo, troque a resposta do seu guru pelo dicionário